Sobre A Prática da Abertura da Boca
por Artur FerreiraA Prática da Abertura da Boca é uma metodologia artística que propõe uma intersecção entre historiografia e fazer artístico, utilizando a materialidade como modo de abertura para acessar e rearticular temporalidades diversas.
Fundamentos Conceituais
O nome desta prática deriva do antigo Ritual da Abertura da Boca, cerimônia realizada há mais de 3 mil anos, no Antigo Egito. Servia tanto como um ritual de finalização para objetos de culto quanto como um ritual funerário de passagem. A mágica era a de animar objetos, estátuas e imagens, para poderem desempenhar fossem funções simbólicas ou a senciência de entes em um plano além da vida. Esta metáfora nos ajuda a compreender como objetos podem adquirir uma dupla existência: uma concreta e outra narrativa/desmaterializada.
A fundamentação teórica de nossa prática, inspirada pelo ritual antigo, se estabelece num diálogo interdisciplinar entre a história da arte, a filosofia e a teoria da imagem, articulando principalmente três pensadores que repensaram profundamente nossa relação com o tempo e a história.
O conceito estrutura-se, primeiramente, na noção de “objetos de tempo impuro” desenvolvida por Georges Didi-Huberman em seu livro “Diante do Tempo: História da Arte e Anacronismos da Imagem”. Para Didi-Huberman, as imagens e objetos não pertencem a uma temporalidade única e linear, mas são constituídos por temporalidades heterogêneas e sobredeterminadas. Ele propõe uma abordagem anacrônica que reconhece como o passado continua a operar no presente através de sobrevivências e latências. Quando um artista contemporâneo trabalha com referências históricas, não está simplesmente citando o passado, mas ativando um complexo jogo de temporalidades que coexistem no objeto artístico.
Este anacronismo metodológico encontra ressonância no pensamento de Walter Benjamin, particularmente em suas “Teses sobre o Conceito de História” e no inacabado “Projeto das Passagens”. Benjamin propõe uma historiografia materialista que opera por montagem, onde o historiador atua como um “trapeiro” ou coletor de restos, fragmentos e ruínas, que foram marginalizados pela narrativa histórica dominante. A imagem dialética benjaminiana – aquela que, num lampejo, condensa passado e presente em uma constelação crítica – torna-se operatória na Prática da Abertura da Boca quando o artista cria objetos que funcionam como condensações temporais, permitindo que o passado e o presente se iluminem mutuamente.
A terceira pilastra conceitual provém de Friedrich Nietzsche, especialmente de sua “Segunda Consideração Intempestiva: Da Utilidade e Desvantagem da História para a Vida”. Nietzsche critica a história monumental e antiquária em favor de uma história a serviço da vida, reconhecendo uma potência na arte “capaz de perceber realidades impenetráveis e ligar coisas que só Deus sabe se têm relação entre si”. Sua defesa do esquecimento produtivo e da força plástica como condições para a criação fundamenta a dimensão poética desta prática, onde o artista não está subjugado ao peso do passado, mas mobiliza fragmentos históricos para uma reconfiguração criativa do presente.
A Prática da Abertura da Boca incorpora ainda o conceito de “fóssil” elaborado por Didi-Huberman, como aquilo que condensa simultaneamente uma presença material e uma ausência temporal. Assim como o fóssil é a marca física de um ser que já não existe, os objetos criados nesta prática são manifestações materiais de temporalidades ausentes, tornadas sensíveis através da manipulação poética da matéria.
Podemos também identificar ressonâncias com o pensamento de Aby Warburg, especialmente em seu conceito de “Nachleben” (sobrevivência) das imagens. Para Warburg, certos gestos, formas e expressões da antiguidade sobrevivem através da história, reaparecendo em contextos distintos. Esta migração de formas e gestos através do tempo encontra paralelo na Prática da Abertura da Boca, quando objetos contemporâneos evocam formas ancestrais, ativando aquilo que Warburg chamaria de Pathosformel, cristalizações expressivas que sobrevivem e se transformam ao longo da história.
Este arcabouço teórico não opera como limitação conceitual, mas como uma constelação de referências que ilumina o potencial da prática artística para reconfigurar nossa experiência do tempo. A Prática da Abertura da Boca convida o artista a habitar conscientemente as paradoxais justaposições temporais que constituem qualquer ato criativo, reconhecendo que, como afirmou Agamben inspirado em Benjamin, “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”.
Aplicação Metodológica
Para aplicar a Prática da Abertura da Boca, podemos seguir estes princípios:
O Jogo da Abertura da Boca
Na obra Jogo para Abertura da Boca, esta metodologia se materializou através da criação de recipientes de parafina inspirados em utensílios de vidro da Roma Antiga. Os objetos foram criados a partir de parafina e moldes de argila.
Posteriormente, este processo revelou coincidências materiais e processuais entre os objetos contemporâneo e os objetos da antiguidade. Como as dimensões análogas entre minhas peças e os objetos romanos e a utilização de moldes de argila negativos por artesãos da antiguidade para fins similares aos meus. Camadas temporais que a teoria sozinha não alcança.
Um convite à Prática da Abertura da Boca
A Prática da Abertura da Boca transcende seu valor metodológico para artistas individuais, constituindo-se como uma forma de conhecimento que abre camadas temporais frequentemente imperceptíveis na experiência cotidiana. Esta prática oferece um método para explorar o tempo como matéria plástica e manipulável, dissolvendo a ilusão de linearidade temporal em favor de uma compreensão mais complexa e rizomática de temporalidades distintas.
Ao propor uma abordagem material para a investigação histórica, esta metodologia permite que os artistas escavem o passado não somente como arqueólogos conceituais, mas como praticantes que reativam potências adormecidas nos interstícios temporais. O fazer artístico torna-se, assim, uma forma privilegiada de rearticular narrativas históricas, não pela via da representação superficial, mas pelo engajamento profundo com as materialidades que atravessam diferentes épocas.
Resultando obras que não são meras referências ao passado, mas entidades que carregam densas camadas temporais em sua própria constituição material. Sua presença física no contemporâneo manifesta uma potência desmaterializada capaz de colocar em suspensão nossa percepção estabilizada do tempo. O que emerge desse processo é uma experiência sensível que desafia a teorização puramente científica, oferecendo uma alternativa à tradicional separação entre teoria e prática no processo criativo.
A Prática da Abertura da Boca convida-nos a compreender que, ao “abrir a boca” de objetos contemporâneos com inspirações históricas, permite-se que estes falem não somente de si, mas das múltiplas temporalidades que os constituem. Os objetos tornam-se, então, aberturas anacrônicas que revelam como o presente é sempre habitado por múltiplos passados e futuros potenciais.
Para além do fazer artístico individual, esta metodologia propõe um reposicionamento epistemológico mais amplo: encontrar novos sentidos no passado através da materialidade e da capacidade poética dos processos artísticos. É uma prática desenvolvida no contemporâneo que, paradoxalmente, caminha no passado em direção ao futuro, iluminando as complexas sobreposições temporais que constituem nossa experiência do presente e expandindo nossa capacidade de perceber, sentir e pensar o tempo para além de suas concepções hegemônicas.